sexta-feira, junho 24, 2005

Raiva

Sinto-me raivoso. Se saltasse do décimo primeiro andar tinha raiva do tempo que meu corpo demoraria a embater na calçada, por isso não será essa a solução que procuro.

Apetece-me bater com os punhos contra uma parede... arrancar os dentes... cometer uma loucura. Abandonar esta selva e rumar para o Túvalo e ser um mendigo.

Porque nasci fora de época?
  Sinto-me um peixe vermelho num aquário de peixes indigos. Porque tenho eu de ser diferente?

Porque não consigo ser aquilo que já fui?
  Já fui doutra cor. Já soube estar confiante onde agora não consigo entrar com receio das paredes de olhos que me observam e me recalcam.

Porque não consigo ser feliz?

Agradeço a grande fortuna de estar vivo, ao meu arquitecto supremo (embora não seja pouco não sei que mais te agradecer... não perceber porque tenho de sofrer assim). Eu sei que o caminho não se faz num minuto. Eu sei que sou impaciente. Eu sei que confundo ambição com ganância. Eu sei tudo o que quero. Eu sei que não tenho nada.

Hoje passou e estou vivo, mas hoje senti-me o verme mais desprezível da terra, que se arrastou de fora do seu buraco para debaixo de uma pedra onde trabalhou e voltou para o seu buraco, vazio e húmido, sem vida e sem amor.

Sem uma mão que me fez uma festa pelo meu cabelo e me disse que era só uma fase.

Lua...




Cheia de ódio
por moldares a cabeça de uma menor sem a minima culpa (e ela gostar e eu não ser capaz de a alterar).

Cheia de raiva
por não conseguir comunicar contigo (foi fácil durante anos).

Cheia de dor
por te engares no meu nome.

Cheia de nada
por me sentir vazio.

Lua meia cheia de vida.

segunda-feira, junho 20, 2005

'O livro dos illuminati' - Robert Anton Wilson

"Ajude a combater a escassez de QI:
preocupe-se menos e pense mais."

domingo, junho 19, 2005

'Tabacaria' - Fernando Pessoa



"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,

O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."

Álvaro de Campos, 15-1-1928

sábado, junho 18, 2005

E brilha...

Põe uma venda e um vestido justo e vem comigo numa noite de mistério.
Abre os olhos.

Segue as estrelas, por debaixo de um céu nocturno pintado de indigo e deixa o mundo para trás. Perde peso. Estamos a aprender a voar.
Esquece os canones televisivos.
Não te 'pre-ocupes' que não nos esqueceremos dos nossos sonhos.

Eu estava cego e vi a luz. Vi o meu anjo a vir ao meu encontro numa luz brilhante.
Brilhas para mim?

Estive amarrado a uma corda de mediocridade,
pendurado pelas minhas inseguranças,
brilhas para mim?

domingo, junho 12, 2005

Adeus - Eugénio de Andrade



Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes
E eu acreditava.
Acreditava.
poO Adeusrque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

sábado, junho 11, 2005

'Poema em linha recta' - Fernando Pessoa

Nunca conhecí quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasito,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe —todos eles príncipes— na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não uni pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ô príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que hà gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos —mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

quinta-feira, junho 09, 2005

Caminho

Para onde vamos ninguem sabe,
posso dizer que vou a caminho, para o fim.
Deus deu-me postura e graça,
Deus deu-me um sorriso na cara.

Para onde nos deslocamos para marcar a fronteira?
A tua opinião é tão válida quanto a minha.
O teu sorriso é tão bom quanto o meu.
Para onde vamos ninguem sabe,
respondo: vou a caminho, pelo caminho.

Para onde vamos ninguem sabe,
nunca digas que vais a caminho, para o fim.
quando Deus te deu postura e graça,
quando Deus te deu um sorriso na cara.

segunda-feira, junho 06, 2005

Hoje...

Hoje ninguem me disse nada.
Hoje nenhuma criança sorriu para mim, com o sorriso que só elas sabem lançar ao coração das pessoas. Daqueles capaz de destruir as muralhas de Jericó ou condenar ao juízo final as duas cidades pecadoras.

Hoje não senti calor humano.
Hoje ninguem me disse nada bonito. Hoje ninguem nem me pediu algo belo, nem uma solução para um problema díficil ou deu-me uma resposta igualmente engenhosa para me deixar descansado e em paz.

Hoje passou.
E eu estou vivo e agradecido.

inSónia

Porque me tiras constantemente o meu sono?
Porque me irritas até ser insuportável coçar-te?
Porque, depois de te coçar, ficas em carne viva e causas ardor e desconforto até ao amanhecer?
Porque não segues o teu caminho sem a intenção deliberada de me mostrares o quanto mais feliz és agora?
Porque te escondes atrás das tuas chantagens fingindo ter e ser o que não és?

Quero dormir descansado. Em paz...

Sai da minha pele.

Da colina


Atrás do portão, ergue-se a colina.

Sem o fecharmos e sem caminharmos meia dúzia de passos a direito não veremos do alto, esta a paisagem...

Ergue-se um cenário verdejante, umas vezes nocturno outras matinal. À sua esquerda temos a floresta, encostada ao jardim das rosas e ao muro que continua do portão. Nela sobressai-nos, ao centro, o grande carvalho da cadeira dos sábios e o envolvedor carvalho dos druidas.

Em frente um rio de pequeno caudal e muito calmo, como numa paisagem de Renoir. Situado a poucos metros da fronteira com a floresta há uma ponte de pedra familiarmente conhecida e estranhamente esquecida. Por baixo dessa ponte temos uma porta de madeira pesada e com juntas de ferro forjado alaranjado pela ferrugem. Aí moram os hobbits. Desta viagem falarei noutra altura.

À direita um cinzento monte de xisto, donde o som de uma cascata nos chega aos ouvidos, apesar não a vermos por estar tapado igualmente com arvoredo.

Em segundo plano uma grande montanha. Um K2. Da margem do rio ao colosso Temos a ideia que vai levar anos a chegarmos até ao seu sopé. Pelo caminho desenhado por clareiras vemos um templo encarnado e branco.

Da margem podemos também ver ao nosso lado direito para onde o rio corre. A cascata do monte de xisto precipita-se em cima deste e impede ver o caminho que o rio leva. O rio atravessa ao meio o monte e torna escarpadas e impossíveis de escalar as faces do monte, tornando, à primeira vista, o seu topo inacessível. Na sua margem esquerda e antes de começar a parede do monte, está o unicórnio ‘Espírito’ como o apelidei, e na margem direita um carvalho com um buraco no seu meio. Nele habita a fada verde, madrinha de caminhada.

Da colina, o ser vivo mais próximo, é uma rosa vermelha, que cresce sozinha aos seus pés. Bela e única. Sozinha. Sem ninguem nem nada ao seu redor.

sábado, junho 04, 2005

Ser diferente

Não gosto de ser diferente. Gosto de sofrer de normose, não gosto de sofrer da pele. Não gosto do que sou. Porque é que as pessoas assim que nos tomam por diferentes, excluem-nos, gozam-nos, maltratam-nos, apenas por uma primeira impressão? Porque é que isso me incomoda?

Sempre fui diferente. Sempre foi magro. Sempre tive um nariz grande. Sempre me exclui. Sempre me isolei. Sempre recebi uma festa na cabeça e um "Deixa lá que isso não é nada." piedoso.

Gosto da minha voz confiante. Ela também é diferente, mas surpreendentemente positiva, sedutora, carregada de mel e capaz de captar e fazer hipnotizar qualquer pessoa que me ouça.

Gosto da maneira como escrevo. Diferente, arrastada pela tentativa de escolha da melhor palavra, da melhor frase. Re-lida à sonoridade perfeita.

Gosto da maneira como trato os meus amigos. Franca, leal e sincera.

Porque me sinto feio? Porque me sinto o mais feio?

Os meus maiores medos esta semana...

Os meus medos da semana foram dois. O falhar com a minha filha. O poder pouco atractivo de sociabilização e de agradar às mulheres. Em relação há minha filha ainda não consegui acertar com o ser um pai presente. Sempre a colocar o interesse profissional acima do meu interesse pessoal. Espero que com o portátil consiga inverter esta situação.

Quanto ao meu outro medo é mais profundo e nunca me tinha saído com esta definição e clareza como até agora. O meu medo é o de não agradar as mulheres? É o de ficar sozinho? É o de ser pouco atraente para as mulheres que eu quero? Creio que todos. Creio que mais alguns. Tenho muitos e muito medo. Tenho medo da noite.

Destes, não sei qual foi o meu maior medo esta semana.

Algum desígnio terá todo este meu medo. Agradeço-Te o facto de estar vivo para perceber por onde queres Tu que eu caminhe.

O Mestre e o Egeu

Agora percebo a minha atracção por pelo elemento aquático.

Aí, junto ao mar Egeu, onde há milhares de anos (sim, já se podem contar milhares), aprendi com o meu Mestre helénico como seria fácil o meu percurso se respeitasse as regras básicas de um viajante do éter.

Não me lembro das lições (peço-te perdão), lembro-me do amor que havia entre nós, lembro-me de o escutar sentado no alto de uma colina enquanto pensava em voz alta o que dizer para acarinhar o meu espírito ou repreender a minha impaciência. Lembro-me de querer seguir as suas pegadas. Lembrei-me agora do erro que é querer ser igual a alguém. Ninguém é igual a ninguém, cada pessoa é única na sua pequenez ou na sua magnitude.

Ainda hoje não sei quem poderei ser.
Ainda hoje não sei quem é suposto eu ser.

Sentados num planalto disse-me, com um tom jocoso, enquanto me abraçava e apertava nos seus braços: "Sempre foste o meu melhor dísciplo, mas continuas um idiota com as mulheres". Porque me lembro das banalidades e não do mais importante? Porque decoro sempre o pormenor e nunca o geral.

Ao fundo, mergulhados no Egeu, víamos uns pequenos rochedos que nos lembravam a paisagem irregular, e tão característica, do mar das mil ilhas.

Eu lembro-me.
Eu estive lá.